sábado, 25 de junho de 2011

Acidez

E foi quando eu perguntei se lady Melbourne queria chá e ela disse que sim, e eu perguntei se com limão e ela ficou me olhando, olhando, até que ela disse, sabe o que ela disse? que com limão nunca, ataca a acidez de seu estômago, e ficou me olhando como se eu devesse saber disso desde sempre e é por isso que hoje eu não gosto de lady Melbourne, muito embora eu sim sim eu gosto de chá sim obrigado com açúcar, isso, não não limão não, ataca a acidez do - sim, exatamente isso, só o açúcar, isso, assim está bom, obrigado.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A arquitetura do vagalume

Já era tarde da noite, mas, como não parava de insistir, achei que era melhor atender.

- Alô.


- Preciso de um texto.


(Detesto texto de encomenda)

- Sobre o quê?


- Não faço idéia. Mas quero que ele se chame A arquitetura do Vagalume.

E desligou sem nem um tchau, um boa sorte, nada. Mas minha imaginação nunca se despede, ela não tem modos, sempre foi assim.

Lembro da vez em que, na prova de Redação, no meio de um parágrafo brilhante, ela desapareceu. Eu estava entrando na adolescência, ainda não entendia bem isso, mas ela não pensou duas vezes, quando eu olhei, ela já não estava mais lá, tinha desaparecido.
Como um animal que brilha e de repente apaga, me vi perdido em pleno vôo, cercado de noite por todos os lados.

Desde então, por puro medo da escuridão, tenho tentado compreender melhor o funcionamento dessa luz, como é que ela acende e apaga assim no meu corpo, mas resta sempre um mistério no aprendizado dessa arquitetura, um mistério que me precipita no abismo da escrita.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Amizade - um rascunho

É aquilo né: só a distância proporcionada pelo tempo permitirá que eu veja esse poema com outros olhos e, então, possa apará-lo e lustrá-lo, na tentativa de extrair algum brilho porventura negligenciado até aqui.

Mas é que o Edu, do blog Pocahontas, fez aniversário no último sábado (27), e queria dedicar alguma coisa. E se deixasse passar muito tempo, perdia a graça. Por isso, aqui está o rascunho de um futuro poema, que esbocei durante este domingo e segunda e que dedico a ele. Tomara que as sujeiras não impeçam a transmissão da mensagem.

Internet tem essa dinâmica, né, ela é quente, ela é suja mesmo, ao contrário do poema, que é sempre o que sobra depois do desgaste do tempo.


Amizade
para o Edu

imensidão azul:

catedral de penas brancas,
a gaivota anuncia em nós uma oração

olhando alto,
teus olhos refletiam o ouro
do dia

e eu, medo do que partia,
quis não perdê-lo nunca,
mas como?

foi quando escolhemos no céu um ponto
e cavamos, pressentindo futuras memórias,
as mãos sujas de luz

onde será que esse dia nos conduz?
tua voz perguntou, e nós não soubemos

mas ali enterramos o silêncio insondável;

para não perder,
marcamos com uma nuvem

desde então,
será sempre assim:
não importa onde estivermos,
sempre que quisermos encontrar

o tesouro

basta erguer a cabeça,
fechar os olhos e deixar iluminar

na nossa imensidão azul
a lembrança branca

da gaivota e também da nuvem
em constante movimento



P.S.: feliz aniversário, Edu!

sábado, 5 de dezembro de 2009

Necessários - um rascunho

Na verdade, Leo, eu criei o Garagem de Palavras para ir rascunhando alguns poemas daquele que eu planejo ser o meu primeiro livro. Mas veja o que é o ser humano: meu perfeccionismo não me deixa exibir rascunhos! Acho todos muito ruins!

"Velhice", por exemplo, é um poema acabado. Os outros idem. O único que foge à regra e que serviria ao propósito do blog é aquele rascunhado naquele post que eu intitulei "em construção". Mas não sei, acho ruim. Acho que falta.

De todo modo, por causa do seu puxão de orelha, passo para cá uma outra ideia que me surgiu:

NECESSÁRIOS

fruta inútil
a vida pesa

pesa até cair
no quintal vazio

não muito longe,
a tarde revira os esqueletos do dia
em busca de algum músculo esquecido

amanhã
fome redobrada
dormiremos

até que não sejamos mais necessários

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Velhice

Quando é que um poema está pronto? Tem uns que demoram, empacam, a gente fica ali, puxando pelo cabresto, dia após dia, pedindo pro poema deixar de coisa, andar, que ficar parado não adianta, mas não tem jeito: o poema não vai e ponto. E tem outros que são justamente o contrário: vêm quase psicografados, sem muitas arestas. Deslizam da mente para o papel como se fossem um Rolls-Royce fluindo pelas curvas do countryside britânico. Um luxo! Para nós, pequenos burgueses da pequena classe média, muito pouo afeitos à labuta, ao suor, eles são cobiçadíssimos. Esse aqui é um deles:


Velhice

Quando eu estiver tão velho que for centenário
ninguém terá a ideia de comprar
tantas velinhas para mim quantos forem os meus aniversários
para colocar em cima de um bolo simples
feito com carinho e dedicação.

Um bolo sem recheios, mas com coberturas e confeitos.
Feito com carinho e dedicação.

E, despejando as centenárias velas sobre a mesa,
uma, duas, seis,
trinta e sete, noventa e sete e

meu Deus, não é que me venderam errado?
Faltam três!

E as velinhas sendo colocadas no bolo,
lado a lado,
numa tal concentração de mãos.

E o bolo simples, de cobertura grossa e doce,
com noventa e sete velinhas em cima e
ninguém percebendo a diferença
entre noventa e sete e cem.

Ninguém.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sem muita bossa

Tem uns poemas, eu até gosto deles, mas acho que não têm valor literário. Esse é um deles:


Se você disser que eu desafino amor

Nossa bossa
cheia de fossa

Roça roça
teu barquinho na minha wave

O dia lá fora tão grande!
a janela nem alcança

Isso que eu sinto no peito
é falta de ar ou de esperança?

depressa
vem
me distrai:

balança balança
o teu barquinho na minha wave

trovões!
tempestades!
clarões!

Tudo jogo de luz, som e fórmica.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

um poema de que gosto muito - escrito em agosto de 2009

Travessia

Na falta de terra e água,
construir um poema com areia e sede,

um poema desses que se perde
na imensa solidão das palavras vencidas:

depois de dias sob o sol inclemente,
lutando, tentando, avançando, sem oriente,
finalmente muitas ficam pelo caminho,

esqueletos nos lembrando que
toda travessia é um risco.

Por isso mesmo,
recomenda-se juntar as palavras em comboio
e mantê-las alerta para que nenhum cisco
caia em seus olhos

(na claridade cortante do deserto
o poema é um comboio frágil,
enxerga pouco e é pouco ágil,
qualquer corpo estranho pode ser fatal);

mesmo assim, não importam os avisos,
palavras não resistirão:

aos poucos o corpo do poema será
também um corpo de vazios e de silêncios

e será assim mesmo:
os vazios, os silêncios e as palavras
em companhia e avançando
sem garantias
dia após dia

em meio à solidão.

E quando, fragilizado porém resistente,
a travessia tiver terminado,
terá terminado o poema?

Este, talvez, sim.

Mas, ainda assim,
enquanto houver palavras
(ainda que tantas faltem),
outros poemas virão.